O embate entre as restrições judiciais e a influência política do ex-presidente reacende o debate sobre os limites da liberdade de expressão e o alcance da propaganda eleitoral no Brasil.
Imagine um fantasma político. Uma figura legalmente silenciada, cumprindo pena em prisão domiciliar, mas cuja voz e imagem, gravadas meses antes, ecoam em plena campanha eleitoral pedindo seu voto.
Este não é um enredo de ficção, mas um labirinto jurídico que a Justiça Eleitoral brasileira terá que desvendar, testando os limites da lei, da tecnologia e da influência política.
Nesse cenário imagine, que nesta sexta-feira (7), a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou, por maioria, os embargos de declaração interpostos pela defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro e dos demais réus no processo referente à tentativa de golpe de Estado, mantendo, assim, todas as condenações.
Bolsonaro recebeu a pena mais severa — 27 anos e três meses de reclusão e, atualmente cumpre prisão domiciliar, sob condições restritivas impostas pelo ministro relator.
A defesa, no entanto, já anunciou a intenção de manejar novos recursos, entre eles embargos infringentes e eventual agravo interno ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, buscando reverter ou ao menos modular os efeitos da decisão. Apesar disso, cresce a expectativa de que o ex-presidente inicie o cumprimento da pena em regime fechado ainda este ano, em cela especial do Estado-Maior no presídio da Papuda, no Distrito Federal.
Mas, entre o cumprimento da pena e a permanência na cena política, emerge um dilema jurídico e institucional: onde termina o direito de expressão e começa a violação das restrições impostas pela Justiça?
Durante o período de prisão domiciliar, Bolsonaro recebeu visitas de aliados políticos, devidamente autorizadas. Fontes de bastidores indicam que esses encontros não teriam se limitado à solidariedade pessoal, envolvendo articulações políticas e conversas sobre o futuro das eleições de 2026.
Há inclusive relatos de que alguns desses visitantes já possuem material de campanha pronto, com vídeos de apoio gravados anteriormente pelo ex-presidente. E é justamente aí que se abre uma zona de incerteza no Direito Eleitoral: se esses vídeos forem divulgados durante a campanha, como deverá reagir a Justiça Eleitoral?
Aqui, a mente se depara com um paradoxo legal fascinante. A Lei das Eleições (9.504/97), em seu artigo 36-A, parece oferecer uma saída. Ela diz que a menção a uma candidatura e a exaltação de qualidades pessoais não são propaganda antecipada. Seria a brecha perfeita? Não tão rápido. A mesma lei impõe uma condição intransponível: desde que não envolvam pedido explícito de voto.
Esse entendimento é corroborado pela doutrina clássica de Joel José Cândido, segundo a qual “a propaganda política é gênero que abrange diversas espécies — a eleitoral, a intrapartidária e a partidária. A propaganda eleitoral é forma de captação de votos, exercida em período legal, destinada à eleição de cargos eletivos” (Direito Eleitoral Brasileiro, p. 149).
Assim, a distinção entre simples manifestação política e propaganda eleitoral irregular depende não apenas da forma, mas sobretudo da intenção comunicativa e do impacto sobre o eleitorado.
Caso se confirme a existência de vídeos gravados por Bolsonaro durante sua prisão domiciliar, em apoio a determinados aliados, duas dimensões jurídicas distintas se entrelaçam: a penal e a eleitoral.
No campo penal, a questão central é se tal conduta configuraria descumprimento de condição imposta na prisão domiciliar, especialmente quanto à proibição de uso de redes sociais e de manifestações políticas públicas.
Já na esfera eleitoral, a discussão recai sobre eventual configuração de propaganda antecipada ou abuso de poder político, a depender do teor, do momento e da forma de divulgação desses materiais.
Mesmo em silêncio, o ex-presidente ainda detém forte influência simbólica. E é exatamente essa influência, mais do que a palavra dita; que desafia o equilíbrio entre o cumprimento da pena e a manutenção da ordem democrática.
No campo da neurociência e da neurolinguística política, compreende-se que o discurso não se limita ao que é dito, mas ao que é ativado no inconsciente coletivo.
Um gesto, uma imagem ou um enquadramento simbólico podem provocar priming, ativando emoções e crenças pré-existentes no eleitor.
Desse modo, o debate extrapola a letra fria da lei e adentra a esfera da percepção pública.
O desafio das instituições, portanto, não é apenas punir o ato, mas compreender seu efeito social e cognitivo.
Este dilema sem precedentes forçará o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a fazer uma escolha fundamental entre duas interpretações do Direito: julgar o ato pelo momento de sua criação ou pela finalidade de sua utilização?
A decisão não será simples. Anular os vídeos? Punir os candidatos por propaganda irregular e abuso de poder? Ou considerar a manifestação válida, criando uma perigosa jurisprudência que permite “estocar” pedidos de votos para uso futuro, driblando as regras do jogo?
A questão central transcende a figura de Bolsonaro. Ela redefine o que significa estar presente ou ausente na política da era digital. Resta-nos observar atentamente, pois a resposta a essa provocação jurídica não apenas selará o destino de algumas candidaturas, mas também o futuro da própria integridade das eleições no Brasil. O fantasma, ao que parece, encontrou uma brecha na lei para assombrar a urna.
DA REDAÇÃO
